quinta-feira, dezembro 20, 2012

josé lyra - o pintor da parahyba


Não conheci José Lyra pessoalmente. Mas lembro bem de sua loja/atelier – Foto Lyra – na rua Peregrino de Carvalho, na época que eu fazia o trajeto entre a General Osório e a Visconde de Pelotas, passando pelo edifício 18 Andares, o  Cine Rex e o Clube Cabo Branco. Algo que me chamava atenção, claro, além de ser uma das poucas casas de material e serviço fotográfico da cidade, é que havia nas paredes algumas pinturas (retratos e paisagens) de José Lyra. Isso muito me interessava porque era aluno dos cursos de iniciação às artes na antiga Coordenação de Extensão Cultural da UFPB, ali em frente ao Cine Municipal. Sempre gastava alguns minutos olhando a vitrine e o interior da loja... mas, tímido que era, nunca me aventurei adentrá-la.

Somente anos depois é que fui saber de José Lyra e de seu Foto Lyra. Num livro de Raul Córdula e Chico Pereira sobre os anos 60, descobri que ali havia sido o atelier deste artista e também a primeira sede do Centro de Artes Plásticas da Paraíba – o CAP –, que existiu entre os anos de 1946 a 1959. Diz Raul Córdula: “Antes da intensificação do movimento de artes plásticas que caracterizou os anos 60 houve, em João Pessoa um aglomerado de artistas de cavalete que, reunidos no Centro de Artes Plásticas da Paraíba, assumiu a pintura de paisagens e retratos da cidade daquela época. A estes artistas, envolvidos no bucolismo da Filipéia, leitores de Rilke e Proust, decupadores dos tons de verde vegetal e marinho, seguidores dos pintores franceses, de Monet a Matisse, os jovens artistas dos anos 60 devem o sereno exemplo da humildade. Foi no Centro de Artes Plásticas que Ivan Freitas, Archidy Picado e Breno Mattos iniciaram-se por orientação de José Lyra, Olívio Pinto, Pinto Serrano e Hermano José.”

O CAP, inicialmente denominado de Centro de Artes Plásticas Pedro Américo, foi a primeira investida na nossa cidade, enquanto grupo organizado de artistas, a propor o ensino de artes plásticas, promover mostras anuais e acolher artistas de outras cidades. “Era na verdade um misto de associação de artistas plásticos e escola informal de arte onde também circulavam poetas e intelectuais.”, afirma o professor da UFPB, Gabriel Bechara.

A história do CAP se confunde com a atuação de José Lyra. Nos seus primeiros anos, José Lyra abrigava em seu atelier as principais ações previstas nos estatutos do CAP, além de ser, neste período, a sede e ponto de encontro dos seus membros. Diz-se que muitos frequentavam o atelier de Lyra apenas para vê-lo pintar... Além de Lyra, o CAP era formado pelos artistas Olívio Pinto e Pinto Serrano (seus primos), Geraldo Moura, Oswaldo Muniz, José Macedo, José Tinet, Edésio Rangel, Hermano José, José Castor do Rego, Elcir Dias, Demócrito de Castro e Silva, João Batista Pinto entre outros, como Clarisse Lins, Arnaldo Tavares e os jovens Ivan Freitas e Archidy Picado, que se agregaram posteriormente a 1947, ano da primeira grande exposição do grupo na Associação Paraibana de Imprensa. Na verdade, pelo fato de ser o único espaço coletivo dedicado às artes plásticas na província, o grupo envolveu artistas e intelectuais de várias tendências estéticas e até políticas, neste caso, os nomes de Leonardo Leal, Olívio Pinto e José Clerot, pertencentes ao Partido Comunista.

Sem patrocinadores, o CAP viveu anos de altos e baixos. Apesar disso houve, esporadicamente, alguma ajuda oficial embora nada comparado com a Escola de Música que recebia apoio financeiro do Estado e era mais interessante aos olhos da elite local. Lyra chegou a organizar um leilão para cobrir gastos com a limpeza, aluguel e conservação do lugar, num prédio da rua Barão do Triunfo. O êxodo dos artistas Hermano José – que, aos poucos substituiu Lyra na condução das atividades do CAP – e Ivan Freitas para o Rio de Janeiro, a falta de apoio sistemático do Estado e a inexistência de um mercado de arte local foram alguns dos motivos para a derrocada deste pioneiro grupo de artistas plásticos na cidade, além do que as funções do CAP, gradativamente, eram transferidas para o poder oficial.

Lyra, na verdade, foi um dos poucos do grupo que iniciou o público local a consumir arte. Sua produção de retratos e paisagens era, paralelamente, à sua atuação como fotógrafo, objeto de desejo da sociedade pessoense. Trazido ainda jovem do Rio Grande do Norte por familiares envolvidos na arte fotográfica, José Lyra iniciou-se retocando chapas e ampliações. Sua família, além dos primos, os fotógrafos e pintores Olívio Pinto, Gustavo Pinto e Pinto Serrano, também tinha no avô paterno, José Graciliano de Goés Lyra, uma referência na pintura e escultura.

Mas a fotografia foi, de fato, aquilo que garantiu a sobrevivência de Lyra. Desde o início do século passado, o retrato tornou-se algo comum entre as famílias mais abastadas. A fotografia era amplamente utilizada, em especial na revista Era Nova (anos 20), que tratava da vida social às amenidades político-culturais da elite paraibana. E, aos poucos, vai fornecer as imagens necessárias dos modelos e, ao mesmo tempo, passam a ser colorizadas e tratadas como pintura. Tanto que, nesta época, os artistas Frederico Falcão, Pedro Tavares, Olívio Pinto, Pinto Serrano e, anos mais tarde, José Lyra, tiveram destacada atuação como fotógrafos, mesmo caso do desenhista suíço Eduardo Stuckert, estabelecido na cidade desde 1900.

Raul Córdula assim ilustra o surgimento de Lyra: “Quando menino ele pintava os 25 bichos do jogo. Diziam a Gustavo [Pinto, seu primo] que ele desenhava muito bem, e foi por isso que ele, aos 18 anos mudou-se para cá para aprender fotografia iniciando-se como retocador de fotografia.” Mas o pintor José Lyra ia muito além da fotografia, embora a utilizasse como estudo para seus retratos. Ora, dado a essa sua “iniciação” pela fotografia Lyra aprendeu todos os segredos de luz e sombra. Tornou-se desta forma, por excelência o nosso principal paisagista e retratista.

Mesmo que um apaixonado em “retratar” a cidade que escolheu para viver e constituir família, há que se destacar da obra pouco conhecida de José Lyra sua ligitimação além fronteiras. No começo da década de 50 exibiu-se em eventos em Natal e Recife, conquistando o prêmio de Menção Honrosa numa das edições do Salão de Pintura do Recife, oferecido pela Universidade de Pernambuco. Há ainda, eu soube, uma série de nus pintados por Lyra e, por causa do conservadorismo de sua província, desconhecida do público. Suas paisagens (com destaque para o Cabo Branco) e naturezas-mortas, mesmo em tom realista, eram verdadeiras aulas de pintura e já anunciavam algum flerte com o expressionismo e o surrealismo. Ele dominava a arte da pintura, sem dúvida. E dominava a arte do retrato, em especial.

Citado no livro Fotografia na Paraíba (Editora UFPB, 1997) do professor e fotógrafo Bertrand de Sousa Lira (a partir de entrevista publicada no jornal O Norte, em 1975), o artista assim se situa, entre a fotografia e a pintura: “Não sei se fotografar é arte. É mais técnica, mas admito que sendo artista, posso fazer. Para mim foi uma atividade inteiramente alienada à pintura.”

Independente de qualquer “ranço” existente entre a pintura e a fotografia, José Lyra marcou definitivamente seu nome na história da arte paraibana. Seja como nosso mais importante retratista (de pessoas e da paisagem), como principal articulador do Centro de Artes Plásticas da Paraíba ou como condutor do Foto Lyra (que manteve suas portas abertas até 1980). Urge que organizemos uma bela exposição de sua obra, não apenas porque comemoramos o centenário de seu nascimento (em 31 de outubro), mas pela extrema vontade de (re)conhecermos nossa cidade em sua obra... E, mais uma vez, Córdula afirma: “Lyra montou seu Foto e passou a pintar a vida e a alma da cidade que ele conhecia ainda calma, barroca e Art Noveau, antes e depois da Lagoa [Parque Solon de Lucena] urbanizada. No tempo que os Pau-D’Arco floriam de uma só vez, haviam marrecos no lago e as andorinhas voavam sobre a tarde. Antes do cinemascope e da universidade, no tempo do Ponto de Cem Réis, com os seus quiosques em forma de rins.”

Ah! Que saudades de José Lyra, do Foto Lyra e de nossa bucólica província...